A festa da moça ou festa do moqueado, entre os índios Guajajara, no Estado do Maranhão, Brasil.

A moça Guajajara, ao menstruar pela primeira vez, tem o seu corpo inteiramente pintado com o sumo do jenipapo, uma fruta silvestre que espalhada pelo corpo, depois de algumas horas, fica de cor azul escuro intenso.

A partir do momento em que ela recebe a pintura no corpo, realizada pela avó materna ou pela própria mãe, a moça cumprirá uma dieta alimentar rigorosa. Ela ficará de repouso num quarto escuro durante oito dias, sem poder sair. Lá, ela receberá suas refeições, visitas, e um conjunto de conselhos dados por sua mãe, tias, e avós. Após esses dias, ela sairá do seu quarto de manhã bem cedo. Iniciará a correr pela aldeia, seguida pelos irmãos e outros parentes que correrão atrás dela, a significar que ela será uma mulher ativa, dinâmica e trabalhadeira. Após a corrida, ao voltar para casa, tomará banho com folhas de cajazeira, para evitar que fique com mau cheiro nas axilas. A dieta alimentar continuará enquanto o corpo estiver pintado. Ela não poderá sair para longe de casa, pois o cheiro da tinta do jenipapo é forte e poderá atrair cobras. Em geral, após quinze dias, a tinta desaparece totalmente do corpo. Com isso encerra-se a dieta alimentar e a moça retoma as atividades ordinárias. Essa é a primeira fase do grande ritual.

Com um intervalo de quinze a vinte dias acontece a segunda parte do ritual: é a segunda pintura. A moça será pintada somente da cintura para cima, e as pernas. A pintura de jenipapo, no modelo de uma blusa, é colocada no corpo com o dedo ou com uma taboquinha. Enquanto um parente ou amiga mais idosa está a pintar a moça, outras ralam a mandiocaba (mingau de farinha de mandioca cozida) para fazer o mingau a ser distribuído para os participantes. Na noite daquele dia acontece a primeira cantoria. Os cantores cantam, sacudindo o maracá, os homens e as mulheres acompanham os cantos dançando. Em geral, a festa vai até de manhã. Ao raiar do dia, a moça serve o mingau a todos os participantes e a outros convidados.

A partir deste dia, o pai e a mãe da moça começam a planejar a festa que os Guajajara chamam de festa da moça ou festa do moqueado. O pai articula com os outros parentes a caçada de animais para o moqueado, onde, em geral, todos ajudam. Os animais caçados são: paca, cutia, caititu, anta, macaco, porco queixada, nambu, jacu, juriti, mutum e jacamim. O jacu, contudo, representa o verdadeiro moqueado. Se na região não houver todos esses animais, o moqueado será feito apenas como os existentes. A nambu, porém, não poderá faltar no moqueado, pois somente a carne dele deverá ser passada nas juntas dos braços e pernas da moça e do rapaz no dia da festa propriamente dita.Uma vez que os animais forem abatidos, as mulheres procederão para o moqueado que é uma forma de desidratação e defumação da carne. Estetem que ser requentado todos os dias. Simultaneamente, a mãe da moça, procurará ver se existem outras moças que queiram se juntar a ela. O mesmo fará com os rapazes. Há necessidade que haja um igual número de rapazes e moças a serem pintados. Encontradas as moças e os rapazes parceiros, as mães começam a confeccionar adornos, roupas e enfeites adequados que as filhas e os filhos irão usar no dia da festa. Estas tarefas podem ser realizadas também pela avó, tia ou outras mulheres próximas da família.

Inserção ativa e responsável na vida comunitária

Os demais cantores, bem como as mães e pais das moças e rapazes que irão ser pintados no dia seguinte, sabem que terão que passar a noite inteira cantando e sacudindo o maracá. É uma solene vigília comunitária antes de um grande acontecimento. Não pode haver tristeza, nem cansaço, nem falta de concentração. Todo cuidado é pouco. Nestas ocasiões, inclusive, pode haver perigo de se pegar algum Karawar (mau olhado) principalmente as crianças e os mais frágeis da comunidade. Os cantos adquirem, progressivamente, um ritmo sempre mais acelerado em que, de forma intermitente e sincrônica, as mulheres se inserem com seus agudos agradáveis. Os participantes se sentem envolvidos numa atmosfera quase mágica que os arrasta para a dança. Não há frenesi, tudo parece equilibrado: os cantores compenetrados, as mulheres agrupadas, os participantes que dançam de braços dados, seguindo uma trajetória rigorosamente circular.

Chegou a manhã. Os rojões, ao nascer do sol anunciam o início da pintura. As moças e os rapazes são pintados inteiramente com jenipapo e recebem seus adornos, enfeites e roupa apropriada. A partir desse momento, eles têm que permanecerem de cabeça baixa, sem olhar para os lados, nem conversar e nem rir. Imediatamente prepara-se o fogo para cozinhar o moqueado.

Os cantos mudam, parecem expressar mais alegria em suas melodias. Os cantores puxam as moças e os rapazes para dançar e juntos, de braços dados, com os demais participantes, dançam durante várias horas. Toda vez que termina um canto, ao retornarem a seus lugares ocorrem vários testes de provocações jocosas onde algumas pessoas tentam fazer sorrir as moças e os rapazes. É uma prova para averiguar sua resistência e capacidade de se concentrar. Os rapazes e as moças são chamados a pronunciar frases sugeridas pelo pajé que dirige o rito, e começam a cantar sobre o colar e o cocar que irão colocar naquele momento. Novamente acomodados, uma mulher passa um pedacinho de carne de nambu nas juntas das pernas e dos braços das moças e rapazes, isto para eles não ficarem doidos, mas manter sempre a sabedoria e o equilíbrio necessários. Finalmente, procede-se à confecção de bolinhos da carne do moqueado cozido socada no pilão e misturada com a farinha de mandioca. Os bolinhos são distribuídos somente pelas moças a determinados participantes e a outros convidados. Estes, ao receberem o bolinho, o partilham com todos os presentes. É um verdadeiro rito de comunhão e partilha onde ninguém dos presentes será excluído. Ao mesmo tempo, vem a significar que a partir de agora, as moças e rapazes estão em condições de prover, autonomamente, bens para si e para os outros. Com o fim da entrega dos bolinhos, as moças e rapazes estarão prontos para a vida adulta e formalmente aceitos como membros ativos da comunidade. Isto não quer dizer que não deverão mais se submeter a outras regras e normas, pois quando eles se tornarem pais ou mães, deverão obedecer a regras de comportamento social e dietas alimentares mais rigorosas.

Uma cultura em transformação

Segundo os Guajajaras mais velhos, até poucos anos atrás, sua cultura era mais valorizada e todos acreditavam nos riscos que poderiam incorrer se alguma regra não fosse cumprida com rigor. Antigamente, dizem, não se ouvia dizer que era bobagem acreditar que um rapaz poderia ficar doido se ele ingerisse uma comida sem que antes se esfregasse um pedacinho de carne de nambu nas juntas de seus braços e pernas.

Atualmente, essas regras não são cumpridas na sua integralidade. Hoje, a moça não é colocada na situação de passar fome e sede. Não sabe resistir aos desejos que lhes são proibidos. A mãe não lhe impõe e não cobra dela, tarefas que são rigorosas, mas que possuem um valor educativo muito importante. Hoje, as moças e os jovens não são testados e educados suficientemente em sua capacidade de resistência. Parece, dessa forma, que a cultura Guajajara não guarda mais mistérios. Tudo parece que pode ser explicado, supostamente, de forma cientifica. Entretanto, observa-se, hoje, o alto grau de desequilíbrio mental e desagregação social que há em muitas comunidades em que tradições e normas que regulam os comportamentos humanos não são observadas. A cosmogonia Guajajara construída ao longo dos séculos, está sendo interrompida ou, quem sabe, varrida, pelo poder avassalador dos mídia dos Karaiw (não índios) ou, talvez, está sendo redefinida sobre bases ainda desconhecidas. Quais são os novos valores e pilares referenciais sobre os quais se quer construir o novo homem e a nova mulher Guajajara? Esta é a grande questão que os pajés e caciques Guajajara se colocam, ao vislumbrar, talvez, um inevitável desmoronamento de um universo que lhes parecia até pouco tempo atrás, equilibrado, ordenado, em que não havia explicação para tudo, mas tudo tinha sentido.

Os cantores não cansam de se deixar inspirar e compor cantos sobre pássaros e animais de uma floresta sempre mais despida e órfã de seres vivos. Os pajés teimam em convidar para a dança e repassar conhecimentos e precauções a serem adotadas pela comunidade. Naquela noite carregada de estrelas e mistério, mesmo sem lua cheia, os maracás pareciam chocalhar mais alto do que as notas das músicas agitadas dos Karaiw trazidas pela morna brisa silvestre.